terça-feira, 14 de agosto de 2012

Sem mais despertar


E a noite caía. Sussurros espreitavam aquele que dormia no quarto mais distante de uma casa muito antiga. Os móveis rangiam com o vento que soprava derradeiro. A mobília era toda de madeira, trazida de um país muito distante para aquele lar de uma família muito tradicional. Móveis que quase possuíam vida. Ele sabia disso. Por esta razão, fechava os olhos o máximo que conseguia. O medo entre as sombras do desconhecido, o pavor entre o descobrir, o saber e pela falta de razão daquela neblina que escorria entre as finas raízes das árvores em sua janela.

Suspiro arrebatante e delírio. Um homem assombrado por um armário que sorria. Eram as fechaduras muito celestiais que incomodavam aquele rapaz que ali se cobria entre véus e cobertores. Pensar e respirar fundo. Era necessário um pouco de racionalidade, afinal, não existiam armários sorridentes. A noite enganava mais que tudo, a noite despistava o sabor de uma alvorada limpa e sincera. Era cruel.

Não podia mover-se, não, de forma alguma. Um movimento brusco qualquer poderia fazer jorrar todo o sangue do seu corpo ainda intocado, novo, fresco. Um sabor desperdiçado em lençóis tão alvos, brancos, quase cristalinos. Um instante em falso e quase dormiu o infeliz. O sono tentava fazer com que ele mergulhasse em sonhos e fantasias. Maiores até do que as mobílias que o envolviam. Mas para quê uma casa tão cheia de coisas. Mal podia andar por ela, passo a passo, caminhava cuidadosamente nas tardes de inverno enquanto o chão tremia tentando engolir as almas dos moradores daquele taciturno solar. Mas era noite, noite tenebrosa e eterna. O sol parecia impossível para aquele rapaz entristecido pelo tempo, pela falta de cores, luzes.

De repente, uma mulher entre as sombras. Agora queria ver melhor, enxergar aquela que ali, do nada surgiu. Cantava baixinho enquanto mexia em seus cachos rubros, como seus lábios. Entoava uma doce canção sobre a lua cheia que começava a iluminar os brancos lençóis do medroso homem que ali fingia dormir. Queria mover-se para olhar melhor aquela dama que quase flutuava, mas não podia, sua cama de madeira maciça incomodava o corpo quase congelado, quase como uma fotografia. Estava extasiado, numa espécie de delírio, seus olhos, agora abertos, bem abertos, viam aquela estátua e a adorava. Uma moça que o fazia esquecer a maldita casa em que vivia. Talvez pudesse mover-se um pouco, só um pouquinho e então aproximar-se-ia da mulher que lhe roubava os pensamentos. Mas antes que pudesse tomar qualquer decisão, ela inclinou-se para perto do seu rosto. Um doce perfume possuía, de frutas frescas, de verão e céu azulado, de ar puro e liberdade. Suspiros e a canção se alastravam naquele quarto agora iluminado. Queria tocar aquela pele alva e macia, queria beijar aqueles lábios vermelhos, será que era um sonho? Não. Não havia dormido, seu leito permanecia intacto. A boca do seu desejo se aproximava lentamente e olhos grandes e verdes encaravam os seus olhos felinos e cansados. "Eu posso te ver", sorrindo disse o ser divino que o fitava. Sorrio também, não podia mais resistir, levantou seu braço e com as mãos frias tocou o rosto da mulher que na noite cantava.

Era quente aquela face, fervia. Tentou afastar-se, mas já não conseguia tirar sua mão daquele rosto que de belo tornava-se macabro. Gargalhadas ao luar, portas que batiam uma sinfonia da mobília que vivia. Um ardor arrebatante em sua têmpora. Caiu na tentação da beleza, na armadilha do mal que sempre o atormentou. Sentiu cada farpa da madeira do seu leito entrando lentamente em seu corpo. Lágrimas de sangue enquanto a música se espalhava repleta dos lábios rubros da dama que o seduziu. Grandes lascas da madeira maciça, perfurando-lhe o corpo, dilacerando-lhe a alma. Já não podia pensar delirar, dormir, sonhar, nem ao menos resistir. Tremia todo o seu corpo, se debatia alucinado pela dor dilacerante, sufocante de ser engolido pela própria cama. Lábios rubros, móveis antigos e o silêncio daquele enterrado no sono profundo e eterno e naquele lar jaziam.

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