E a noite caía. Sussurros espreitavam aquele que
dormia no quarto mais distante de uma casa muito antiga. Os móveis rangiam com
o vento que soprava derradeiro. A mobília era toda de madeira, trazida de um
país muito distante para aquele lar de uma família muito tradicional. Móveis
que quase possuíam vida. Ele sabia disso. Por esta razão, fechava os olhos o
máximo que conseguia. O medo entre as sombras do desconhecido, o pavor entre o
descobrir, o saber e pela falta de razão daquela neblina que escorria entre as
finas raízes das árvores em sua janela.
Suspiro arrebatante e delírio. Um homem assombrado
por um armário que sorria. Eram as fechaduras muito celestiais que incomodavam
aquele rapaz que ali se cobria entre véus e cobertores. Pensar e respirar
fundo. Era necessário um pouco de racionalidade, afinal, não existiam armários
sorridentes. A noite enganava mais que tudo, a noite despistava o sabor de uma
alvorada limpa e sincera. Era cruel.
Não podia mover-se, não, de forma alguma. Um
movimento brusco qualquer poderia fazer jorrar todo o sangue do seu corpo ainda
intocado, novo, fresco. Um sabor desperdiçado em lençóis tão alvos, brancos,
quase cristalinos. Um instante em falso e quase dormiu o infeliz. O sono
tentava fazer com que ele mergulhasse em sonhos e fantasias. Maiores até do que
as mobílias que o envolviam. Mas para quê uma casa tão cheia de coisas. Mal
podia andar por ela, passo a passo, caminhava cuidadosamente nas tardes de
inverno enquanto o chão tremia tentando engolir as almas dos moradores daquele
taciturno solar. Mas era noite, noite tenebrosa e eterna. O sol parecia
impossível para aquele rapaz entristecido pelo tempo, pela falta de cores,
luzes.
De repente, uma mulher entre as sombras. Agora
queria ver melhor, enxergar aquela que ali, do nada surgiu. Cantava baixinho
enquanto mexia em seus cachos rubros, como seus lábios. Entoava uma doce canção
sobre a lua cheia que começava a iluminar os brancos lençóis do medroso homem
que ali fingia dormir. Queria mover-se para olhar melhor aquela dama que quase flutuava,
mas não podia, sua cama de madeira maciça incomodava o corpo quase congelado,
quase como uma fotografia. Estava extasiado, numa espécie de delírio, seus
olhos, agora abertos, bem abertos, viam aquela estátua e a adorava. Uma moça
que o fazia esquecer a maldita casa em que vivia. Talvez pudesse mover-se um
pouco, só um pouquinho e então aproximar-se-ia da mulher que lhe roubava os
pensamentos. Mas antes que pudesse tomar qualquer decisão, ela inclinou-se para
perto do seu rosto. Um doce perfume possuía, de frutas frescas, de verão e céu
azulado, de ar puro e liberdade. Suspiros e a canção se alastravam naquele
quarto agora iluminado. Queria tocar aquela pele alva e macia, queria beijar
aqueles lábios vermelhos, será que era um sonho? Não. Não havia dormido, seu
leito permanecia intacto. A boca do seu desejo se aproximava lentamente e olhos
grandes e verdes encaravam os seus olhos felinos e cansados. "Eu posso te
ver", sorrindo disse o ser divino que o fitava. Sorrio também, não podia
mais resistir, levantou seu braço e com as mãos frias tocou o rosto da mulher
que na noite cantava.
Era quente aquela face, fervia. Tentou afastar-se,
mas já não conseguia tirar sua mão daquele rosto que de belo tornava-se
macabro. Gargalhadas ao luar, portas que batiam uma sinfonia da mobília que vivia.
Um ardor arrebatante em sua têmpora. Caiu na tentação da beleza, na armadilha
do mal que sempre o atormentou. Sentiu cada farpa da madeira do seu leito
entrando lentamente em seu corpo. Lágrimas de sangue enquanto a música se
espalhava repleta dos lábios rubros da dama que o seduziu. Grandes lascas da
madeira maciça, perfurando-lhe o corpo, dilacerando-lhe a alma. Já não podia pensar
delirar, dormir, sonhar, nem ao menos resistir. Tremia todo o seu corpo, se
debatia alucinado pela dor dilacerante, sufocante de ser engolido pela própria
cama. Lábios rubros, móveis antigos e o silêncio daquele enterrado no sono
profundo e eterno e naquele lar jaziam.